quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Desejo e solidão

Repasso algumas palavras de Martha Medeiros escritas na crônica "Desejo e solidão" do livro Montanha Russa...


"Se existe uma coisa que me faz ganhar o dia é ler um livro que bagunça minhas entranhas.O último que conseguiu tal feito foi Uma desolação de Yasmina Reza, editora Rocco.É um monólogo de um ancião.Ele fala a um filho que não interage, apenas escuta.
Há muitos argumentos para a desolação do personagem .Ele sente-se excluído do futuro e acredita que nada é real, a não ser o momento.Revela que a partir de certa idade, tudo dá na mesma.Que as pessoas gastam inutilmente seu tempo se ocupando.Que depois da juventude trocamos a paixão por ponderação, o que é um crime.E que a única coisa que existe é o desejo e solidão.Foi aí que minhas entranhas acusaram o golpe.
Como eu disse antes, o personagem é um velho sem muito tempo de vida fazendo um inventário de suas perdas e ganhos.É nesta contabilidade que sobram apenas o desejo e solidão: tudo o mais lhe parece descartável.Não é uma visão oba-oba da vida, ao contrário, é uma análise cirúrgica, nossa alma a olho nu.
Desejamos um lar, uma profissão, ter amigos.São as coisas que nos ensinaram a desejar, projetos socialmente aprovados.Mas o desejo tem vontade própria, é longevo e não se esgota no cumprimento de metas.
Nosso desejo é secreto,e sabemos muito bem que é ele e só ele que nos move.
"Não existe nada mais triste, mais sem graça que a coisa realizada", diz o personagem.Esta deve ser a grande angústia da idade avançada: mesmo tendo tido uma vida intensa e gloriosa, isso não basta.É preciso manter a ilusão pulsando, um alvo adiante,a perseguição contínua, para não sermos sepultados antes da hora.
O desejo é um leão.Selvagem, carnívoro, brutal.Não permite acomodação: nos faz farejar, caçar , brigar pelo nosso sustento emocional.O desejo nos transpassa, nos rouba o sono,confunde o pensamento lógico.O desejo corrompe nosso bom comportamento, faz pouco caso da nossa índole irretocável.O desejo não tem pátria nem família, o desejo não tem hora nem tem verbo, o desejo ruge, nosso corpo é a sua jaula.
Mas a gente acomoda e anestesia o leão em nós.Resta a jaula vazia.Já nenhum risco nos ameaça,nenhuma surpresa nos aguarda.Uma desolação, chama-se o livro."